ATOS QUE DESAFIAM A VIDA E A MORTE- Capítulo 1
“Vivo,
sou a tua peste. Morto, serei tua morte.” (Martinho Lutero)
Onze de setembro de 2017. A tarde
estava nebulosa e com aspecto de chuva vindoura. O papel de parede velho e
desbotado do meu antiquário dava um ar ainda mais sombrio ao meu dia,
contrastando com o aspecto desértico da Rua XV de Novembro. Nenhuma alma deste
plano terreno havia cruzado a porta da minha loja ainda.
Nenhuma
alma viva havia aparecido.
Eu estava muito entediado, em parte
pelo dia mórbido, mas também pela ociosidade em que me via obrigado a
manter-me. Neste momento, eu encontrava-me encostado no balcão, com os
cotovelos apoiados sobre ele, segurando minha cabeça entre as mãos, com a minha
típica expressão (perdoe-me o termo) de “cara de merda”. Neste momento, um
homem entrou pela porta lateral. Sua aparência era um tanto curiosa. Vestia um
terno barato, porém muito bem passado e alinhado. Carregava uma maleta pequena
na mão esquerda. Contava com aproximadamente vinte e cinco anos. Baixo, tinha
os cabelos castanho claro cortado à escovinha e era muito pálido. Dois grandes
olhos azuis davam ar de alerta e desconfiança.
Parecido
com um fantasma.
- Senhor Fernando Martins?- perguntou o
rapaz, mostrando ter uma voz mansa e uniforme.
- Sim, sou eu- respondi, um tanto
surpreso com aquela visita estranha.
- Meu nome é Galeno e sou advogado,
disse-me apertando minha mão. Estou aqui para tratar de um assunto sério: o
senhor estaria disposto a vender sua propriedade localizada no bairro Vila
Fátima pelo valor de seiscentos mil reais?
Fiquei realmente espantado e surpreso
com a pergunta tão direta. No início fiquei meio travado, não mostrei nenhuma
reação. Mas depois comecei a discorrer:
- Eu tenho um sobrado na Fátima. Não é
lá grande coisa. Não vale esse preço. Foi herança do meu pai, onde morou por
muitos anos antes de morrer. A casa está bem arruinada, devo dizer. Telhado em
estado deplorável, infiltrações, trincas nas paredes e muito mofo. Ainda não
havia pensado em vendê-la e, por mais ambicioso que eu fosse, avaliaria em
menos de cento e cinqüenta mil reais.
- Então? O senhor está interessado em
vendê-la ou não?
Eu estava ficando desconfiado.
- Por que não nos sentamos, hein?- disse,
apontando uma cadeira para o homem. Eu não estou entendendo nada. Explique-me
essa história direito.
- Bom, meu cliente me procurou e disse
estar muito interessado em sua propriedade e está disposto a desembolsar seiscentos
paus por ela. Porém, essa pessoa não quer ser identificada e pretende realizar
a transação anonimamente.
- Mas, qual o motivo disso tudo?
- Esse detalhe não poderei responder.
Mas garanto-lhe que é uma pessoa séria e de boa conduta. O senhor não correrá
risco algum. Então, o senhor aceita?
- Eu preciso pensar. Não posso
responder assim de imediato. Além do mais, como saberei se vocês não estão
tentando me passar a perna, hein?
- Pode ficar tranquilo. Não há nada
disso. Meu cliente é uma pessoa idônea e honesta. Tudo bem, mas ele me deixou
claro que só dará três dias para o senhor resolver.
- Três dias? Mas é muito pouco tempo!
- Eu sei, mas são as normas. Três dias,
nem mais, nem menos.
- Está certo, mas onde poderei
encontrá-lo?
- Vou deixar meu cartão. Voltarei daqui
três dias, às dez da manhã. Não se esqueça: é um bom negócio. Passar bem.
Saiu.
Eu estava ainda chocado com aquela
visita estranha e inesperada. Olhei para o cartão que dizia:
Dr.
Galeno
Advogado
Rua
Sinharinha Frota, nº ***, Centro
Capivari/SP
Tel:
**********
-Estranho!- murmurei- Esse Galeno não
tem sobrenome?
Passei o restante do dia e o seguinte
refletindo. Pensei muito naquela estranha proposta e tentei tirar várias
conclusões, algumas sem êxito algum. Poderia ser uma roubada ou um excelente negócio.
Mas, por que tanto interesse naquele velho prédio caído? O que poderia haver de
precioso lá? Algum tesouro de valor incalculável escondido em algum pedaço de
terra? Depois de horas e horas a fio, a ponto de enlouquecer, tive um
pressentimento de que não iria me arrepender caso vendesse o imóvel. Uma voz
aveludada e misteriosa sussurrava em meu ouvido, dizendo: “será melhor se
vender”. Decidi que confiaria em meus instintos e resolvi vender. Estava
confiante agora. Seria o que Deus quisesse, oras.
Aquela
noite eu tive um pesadelo.
Era noite alta. Eu caminhava no centro
de Capivari enquanto as ruas, casas e comércios ardiam sob labaredas de fogo.
Uma nuvem monstruosa de fumaça tapava o céu. Pessoas gritavam o tempo todo e
tentavam fugir daquele inferno dantesco. Lutavam para salvarem suas
existências.
Capivari
havia sido incendiada.
Tudo isso parecia não me atingir. Eu
não estava com medo algum. Caminhava calmo e lentamente, com uma expressão
assassina em meus olhos. Sim, eu podia ver-me! Aquele não poderia ser eu. Eu não
possuo aquela maldade no olhar, nem aquela crueldade nos lábios...
Mas, parecia-se comigo, não havia
dúvidas. Enquanto caminhava, amontoavam-se cadáveres pela sarjeta. Eu olhava e
passava por cima de cada corpo sem pestanejar, sem um lapso de pena no olhar.
Muito pelo contrário, eu sentia uma alegria macabra, um prazer sádico ao
contemplar todo o sofrimento alheio.
Eu me observava de longe enquanto casas
queimavam como carvão, pessoas tentando em vão salvarem-se. Vi rostos
familiares por todos os cantos, meus amigos e parentes... Vi meu irmão Henrique
me implorar por ajuda e eu passei por cima dele como se fosse um rato. E eu
continuava a caminhar com aquele aspecto odioso vagarosamente, com aquela
psicose imunda no olhar.
Eu
caminhava tranquilamente pelo Inferno.
Acordei ofegante e suado. Olhei no
relógio e eram três da manhã.
A
hora do Diabo.
-É
apenas um sonho, murmurei.
E voltei a dormir.
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