A BRUXA
Conversas filosóficas.
Porque esse tipo de assunto atrai a tantos jovens, em sua maioria os
“pseudointelectuais” na puberdade? Bom, não estou aqui para
criticar de forma alguma o modo de pensar da adolescência
capivariana, mas apenas para relatar uma conversa um tanto sombria
entre dois jovens que se encontravam, neste momento, sentados em um
banco próximo ao coreto da praça central de Capivari naquela tarde
de domingo ensolarado.
Eduardo e Renato eram
amigos de longa data. Cursavam o Ensino Médio na Escola Padre
Fabiano e gostavam muito de conversar sobre vários assuntos.
Discutiram calorosamente política, história, religião, futebol.
Até que...
-Capivari é uma cidade
com tantos problemas! - lamentou Eduardo.
Renato olhou para o
amigo com um certo ar professoral.
-Bem, existe algo que
acredito que possa ser a explicação para isso.
-E qual seria essa
explicação?
-Um fato que ocorreu há
muitos anos, mas que já foi esquecido por muito tempo. Se eu contar
a você, promete que vai esquecer essa história e não vai espalhar
a mais ninguém?
Eduardo encarou o amigo,
mas confirmou:
-É claro.
Então Renato começou
os relatos que transcrevo a seguir.
Eram os anos 70. Naquela
casa antiga com várias janelas da Rua Padre Fabiano, datada desde os
primórdios da construção do município de Capivari, vivia Dona
Mariana, uma mulher na beira dos setenta anos. Ela era viúva e
morava sozinha, onde recebia visitas e pouco saía de casa. A maioria
de seus visitantes eram as crianças pobres da cidade. Mariana
gostava muito delas e sempre distribuía doces e brinquedos para a
alegria dos pequenos que lhe retribuíam o gesto com ternos sorrisos
e demonstrações de afeto dos mais sinceros. Quase todos os dias, os
alunos do Grupo Escolar Augusto Castanho ao finalizar o dia letivo
tinha rumo certo: a casa de Dona Mariana. A generosidade da senhora
era notada em toda cidade. Ela tornou-se tão conhecida pela sua
bondade que até mesmo as crianças de uma posição social superior
iam visitar-lhe. Ela então, levava todas as crianças até a sala de
sua casa onde contava-lhes histórias encantadoras. Bruxas, fadas,
princesas e príncipes eram o universo de magia que fazia parte do
repertório dessa senhora capivariana tão admirada pela tenra idade.
Os pais das crianças é
que não gostavam muito. Apesar de acharem que ela levava jeito com
as crianças, haviam boatos que Dona mariana na verdade seria uma
bruxa e que talvez ela não fosse uma pessoa tão bem-intencionada
como parecia. Alguns pais proibiram a visita dos filhos à mulher.
Dona Mariana sabia dos boatos, porém não havia se importado tanto.
Porém, algo de
terrível estava para acontecer nesta pacata cidade.
Pedrinho
e Kiko eram dois garotinhos de nove anos que costumavam frequentar a
casa de Dona Mariana. Todos os dias, ao saírem do Grupo Escolar
Augusto Castanho, costumavam passar um tempo na casa da mulher,
comendo doces e ouvindo histórias, como as outras crianças. Numa
tarde de sexta-feira os dois meninos saíram do colégio, como era
costumeiro. Durante a noite, não voltaram para a casa deles. Os pais
sentiram-se preocupados no início e saíram para procurá-los. Nada.
As
famílias estavam desesperadas, como era de se esperar. Capivari era
uma cidade com pouca incidência de crimes. Todos sabiam que crianças
são travessas e, muitas vezes, em brincadeiras acabam se perdendo
por aí. Porém havia algo que assustava aos pais dos meninos
desaparecidos: eles haviam escutado os boatos da mulher que na
verdade seria uma bruxa. E se fosse verdade? E se ela os havia matado
para realizar os mais sórdidos feitiços? E se outras crianças
estivessem em perigo?
Os
pais dos garotos estavam inconsoláveis. E como não estariam? Nem a
polícia, o apoio dos outros pais, cartazes e todo o tipo de ajuda
conseguiram localizar as crianças. Já se passavam dias e nem sinal
dos menininhos. Até que um certo boato começou a ganhar ainda mais
força: e se aquela mulher que atraía crianças e que era chamada de
“bruxa” estivesse mesmo envolvida nos desaparecimentos?
Dona
Mariana tornou-se a principal suspeita dos sumiços. A cidade toda se
revoltou contra ela. Ela havia raptado os dois meninos! Então a
coisa tomou proporções ainda maiores: todos os pais das crianças,
ricos e pobres, brancos e negros que costumavam frequentar a casa da
mulher passaram a proibir os filhos de visitá-la.
A
mulher assistia a tudo com tristeza.
Um
casal bateu à porta da casa da idosa e fez uma exigência. “Devolva
as crianças, sua bruxa maldita!”, diziam. Dona Mariana explicava
que lamentava muito o ocorrido e que nada tinha a ver com a história
dos desaparecimentos. Mas qualquer coisa que dizia fazia com que a
população da cidade se convencesse do contrário.
Então
algo de muito abominável aconteceu na cidade. Algo que permanece
oculto até hoje, coberto de terra e apenas na memória de alguns
capivarianos que viveram nessa época. A maioria na verdade nem ousa
sequer lembrar do assunto, pois os fatos que se sucederam foram
terríveis, terríveis!
Não
sabendo mais como lidar com a situação, os pais decidiram fazer
algo sobre-humano. Se reuniram na praça central, um total de
aproximadamente cinquenta pessoas, e passaram a discutir as medidas
que precisavam ser tomadas a fim de evitar novos crimes por parte
daquela mulher diabólica que, sabe-se lá o que havia feito com as
crianças.
-Precisamos
acabar com esta bruxa!- gritavam.
-Ela
precisa pagar pelo que fez!- vociferavam outros.
-Ela
precisa ser banida! Nossos filhos poderão estar correndo perigo!
Na
reunião também estavam presentes as autoridades da cidade, como o
prefeito, o delegado e o padre da Paróquia São João Batista, cujos
nomes não poderão ser citados. A polícia, devido às denúncias,
havia feito toda uma investigação acerca do caso, porém nada
haviam encontrado que pudesse incriminar Dona Mariana. Ela estava
limpa aos olhos da justiça.
A
população capivariana estava inconformada. Tinham que tomar uma
providência ou mais crianças pagariam o preço. E ninguém queria
ver seu filho estripado por uma mulher que tinha feito pacto com o
diabo. Rumaram até a casa de Dona mariana, inclusive as autoridades
da cidade. A revolta era geral. Quando chegaram em frente à sua
residência todos gritavam com ódio ordenando que “a bruxa se
mostrasse”. Dona Mariana abriu a porta e encarou os presentes sem
dizer uma única palavra.
As
pessoas já não tinham mais controle do que faziam. Blasfemavam
contra a mulher, dizendo toda a espécie de insulto que faziam-na
tremer. Até que acabaram fazendo uma coisa terrível, a qual o
simples fato de eu estar narrando esta passagem arrepia-me os
cabelos. Utilizando de galões de gasolina e fósforos, os que
estavam presentes atearam fogo em sua residência, ignorando os
pedidos lamuriosos de Dona Mariana. Porém, não satisfeitos e num
ato impensado, uma mulher jogou mais gasolina, dessa vez na própria
senhora, a qual entrou em combustão na mesma hora. Em meio a gritos
de agonia e debatendo-se de maneira horrível, Dona Mariana deixou
seu último desejo aos habitantes da cidade que havia provocado a sua
morte de maneira tão violenta:
-Lanço
uma maldição sobre essa cidade! Toda ela sofrerá todo o tipo de
atraso! Todos vocês irão perecer, um a um! Vão sofrer da pior
forma!
Silêncio.
Depois
de alguns minutos, ainda em choque, as pessoas perceberam o que
haviam feito. Todos se encaravam denotando terror em seus olhares
assombrados, implorando para que aquilo não tivesse passado de um
pesadelo. Mas sabiam que era real e que agora não havia mais
remédio. Resumindo a história: todos voltaram às suas casas, o
imóvel destruído pelas chamas foi restaurado pela própria
prefeitura e as autoridades da cidade fizeram um apelo à população:
que nada sobre o fato fosse comentado. Ninguém sequer tocaria no
assunto, pois o problema já estava resolvido e as crianças poderiam
circular agora pelas ruas em segurança.
Mas
o inesperado aconteceu. Pedrinho e Kiko, os dois garotinhos que
haviam sido supostamente raptados pela bruxa apareceram, para a
surpresa de todos. Eles haviam se perdido próximo à Fazenda
Capuava, onde haviam ido brincar sem que ninguém soubesse. A muito
custo retornaram para suas casas, muito sujos e famintos, porém sãos
e salvos.
Foi
então que os capivarianos perceberam que haviam cometido um grande e
imperdoável engano. Mas agora era tarde.
Não
há muito o que contar, mas dizem que a partir de então muitas
tragédias começaram a ocorrer com os habitantes da cidade, os
mesmos que presenciaram e participaram do assassinato de uma mulher
inocente. Alguns morreram em acidentes horríveis na estrada, outros
sofreram mortes violentas e cruéis. Um a um, cada um dos cinquenta
presentes naquele acerto de contas macabro pereceram da maldição.
Inclusive a própria cidade até os dias de hoje sofre com os atrasos
e os diversos problemas que a vem acometendo desde essa época,
sofrendo pela condenação de uma mulher cujo único crime foi ter
sido apenas gentil e bondosa com as crianças capivarianas.
Os
dois ficaram em silêncio. Eduardo refletiu por alguns instantes e,
quebrando o silêncio, perguntou ao amigo:
-É
uma história muito triste, Renato. Essa senhora não merecia ter
passado por isso. Sem falar que foi um homicídio brutal! Isso
deveria ser tratado na justiça!
-Exatamente,
Du. É por isso que nunca mais se tocou no assunto. Isso já
praticamente foi esquecido em Capivari.
-Mas,
como é que você ficou sabendo dessa história?
Renato
olhou para o amigo com um certo pesar nos olhos:
-
Meu pai me contou. Ele era um dos garotos desaparecidos.
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