PADRE MARQUES ENTRE A CRUZ E A POLÍTICA

- A política é a minha vida- repetia o notório Padre José Marques, conhecido (e muito politizado) vigário da Igreja Matriz de São João Batista no início do século XX, a todos aqueles que contestavam e criticavam o fato de um pároco envolver-se no campo político como ele havia feito há alguns anos.
            Padre Marques (como era conhecido) era um sujeito astuto, esperto como um gato e portador de uma lábia melíflua, capaz de convencer a qualquer um por mais cético que este fosse, em suas homilias muito bem elaboradas e de palavras escolhidas a dedo, fazendo-se entender por até aquele matuto analfabeto residente na área rural mais afastada da cidade. Seu metro e setenta e corpo magro metido em uma batina de cor escura, a cabeça grisalha e altiva e o sorriso evidente faziam dele uma figura adorada e reverenciada em toda a cidade. Era respeitado e amado de um modo maquiavélico, como se ele fosse o próprio senhor do equilíbrio da virtú, e um tanto temido também, devido a sua posição sacerdotal.  Quando resolveu entrar na política ao filiar-se no Partido Jagunço, os jornais da cidade prontificaram-se a criticá-lo ou adorá-lo. É claro que ele foi afastado da paróquia dado as circunstâncias, porém seu carisma enquanto religioso permaneceu intacto devido ao seu bem-querer entre a população capivariana.
            Porém, nem todos o amavam assim.
            O padre passou anos envolvido no campo político propondo uma série de melhorias para a sua cidade, mas também tendo contato com gente graúda do meio como o Conselheiro Rodrigues Alves. Seu ápice foi quando eleito presidente da câmara municipal. Foi nesse momento que o padre ainda não havia percebido o quão encrencado estava e o quanto ele poderia ter sua vida ameaçada por inúmeros inimigos que acabou contraindo nesse momento.
            Certa noite de sábado, o padre havia voltado para casa. Tinha acabado de celebrar a missa noturna e estava apenas na companhia do sacristão da igreja que também retornaria para a sua residência e acompanhou o pároco até o sobrado sacerdotal da antiga Rua Saldanha Marinho. Era um ponto remoto e sombrio do centro, iluminado apenas por lampiões a gás acetileno. Despediu-se do sacristão e recolheu-se para o seu aconchego. O que o padre não sabia (ou melhor, ninguém sabia) é que naquela noite e naquele exato momento ele estava sendo observado por um inimigo do partido que planejou com muito cuidado um atentado contra a vida do religioso. A mira do homem era perfeita e seus olhos eram como os de um lince. A garrucha apontada para a janela aberta só esperava um momento adequado para disparar e mandar o padre (que Deus o tenha) morar com Jesus Cristo e os anjinhos.  
            Padre Marques, encostado em um móvel rústico, manuseava um pequeno rádio, tentando ligá-lo. Foi quando ouviu o disparo. O tiro atingiu-lhe sua coxa direita. Em meio à dor lancinante, o pároco caiu e permaneceu horas naquela posição, o sangue espesso manchou o assoalho de madeira. O local onde a bala havia se alojado doía profundamente e o sangue vertia sem cessar. Foi socorrido quando o sol nasceu por Dona Augusta, uma bondosa senhora que limpava todas as manhãs a casa paroquial. O sofrimento pelo qual o homem de Deus passou foi terrível. Ao se recuperar meses depois, sua perna não havia voltado ao normal, fato que o levou a utilizar uma bengala (uma dura peça de madeira) até o fim de sua vida. O desconhecido que tentou matá-lo nunca foi identificado e jamais tentou terminar o serviço concluído sem êxito. Na verdade, nunca se soube explicar se aquele homem, aquele inimigo não-declarado, queria mesmo matá-lo ou dar-lhe apenas um susto, afinal como muitos diziam “matar padre dá um azar danado”.
            Padre Marques viveu ainda por vários anos, mas quando resolveu deixar a política e retornar às suas missões sacerdotais, já era tarde. Acabou falecendo (de causas naturais), deixando a cidade de Capivari em luto. Sua vida foi inteira marcada por uma grande fama, seja ela boa ou má. Mas uma coisa não poderia ser negada: o carisma dele era evidente, haja vista o quanto era querido por uma grande parcela de capivarianos católicos.
            Muitos conhecidos de Padre Marques dizem que o local onde o sangue escorreu em decorrência ao tiro manchou o assoalho de madeira para sempre. Vários visitantes visualizavam a mancha marrom-escura com estranheza, entendendo aquilo como um sinal de conspiração e um atentado mal-sucedido.
            Já faz muitos anos que esse fato aconteceu, porém, mesmo após tantos anos, a Igreja Matriz de São João Batista ainda contém em seu interior a essência daquele notório pároco (o primeiro vigário a iniciar uma reforma e ampliar o templo sagrado), como indica o fato do atual sacristão afirmar com fervor ser possível ver Padre Marques circular pela igreja vazia em sua batina preta e comprida e exibindo seu sorriso peculiar após as missas noturnas.
             Talvez religiosidade e política não devam se misturar.
           
           


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