TIA CATARINA

No momento em que decidi pegar a caneta para relatar os últimos fatos ocorridos senti como se estivesse em uma empreitada que porventura me libertaria da angústia na qual venho mergulhado desde o fatídico dia que... Bom, isso eu terei que relatar desde o início. Devo prevenir o leitor que tenho o péssimo costume de contar uma história pelo fim e, se caso não entender a minha, peço as mais sinceras desculpas. Prometo tentar encaixar os fatos de acordo com a sua cronologia exata, mas temo que velhos hábitos sejam difíceis de mudar. Hoje faz uma noite fria e ouço um barulho intenso vindo do lado de fora, o vento rugindo com total voracidade. O medo parece estar presente no ar gélido da noite, sensação a qual me traz as lembranças mais medonhas que reuni durante minha parca existência. Mas chega desse monólogo de um pobre presidiário que se encontra na mais profunda decadência. Droga! Acho que já revelei ao público que sou um criminoso. Eu avisei que tinha mania de inverter a ordem dos fatos. Mas tudo bem, iniciemos a minha história macabra e nela você, caro leitor, conhecerá os infortúnios que me cercaram nos últimos tempos e poderá me julgar com mais afinco. Devo deixar claro (e muito claro) que nada ocultarei e que tudo o que está escrito nessas páginas é a mais pura e inquestionável verdade. Já não tenho mais motivos para mentir, pois todos os meus pecados estão sendo pagos da mais terrível maneira e o demônio que me acompanhará até o resto dos meus dias já se encarregou de atribuir-me esta dura punição.
            Eu era professor de Matemática. Lecionava em escolas da rede pública de ensino e, embora um tanto insatisfeito com a minha situação profissional, vivia bem e de acordo com as normas e regras da sociedade. Minha atitude como profissional, cidadão e cristão sempre foram irrepreensíveis e posso garantir que é raro encontrar indivíduos tão íntegros como eu era. Vivia tranquilamente e morava sozinho em um sobrado. Mas foi naquele dia desafortunado- o dia que deu início a minha desgraça- que recebi um telefonema de Tia Catarina. Essa senhora idosa vivera uma vida de infelicidades ao lado de um marido bêbado e viciado em jogos. Ele já havia falecido há anos, porém deixou à minha pobre tia uma casa hipotecada e, como ela não havia conseguido pagar, foi despejada. Seus únicos parentes vivos era eu e meu primo Fábio. Como Fábio viajava muito devido ao trabalho, minha tia ligou-me pedindo auxílio. Prontamente disse-lhe que poderia ficar em minha casa.
            O primeiro mês em que Tia Catarina esteve instalada em minha residência foi tranquilo. Era uma velha pacata, sem nenhum vício e de fácil convivência. Fazia questão de realizar todos os afazeres domésticos e convivíamos de forma harmoniosa. Mas foi no segundo mês que as coisas começaram a mudar.
            Comecei a ter sentimentos ruins em relação à Tia Catarina. Não sei dizer o que causou tal mudança repentina, mas a simples presença dela passou a me incomodar estranhamente. No início eu a evitava. Conversava o essencial e passava mais tempo que o habitual na escola. Não sei exatamente o que significava, mas talvez tenha sido o modo como ela me observava. Por diversas vezes a notei me olhando de modo perturbador, como se prestasse atenção a cada detalhe do meu ser. Não dizia nada, apenas me observava. E essa situação incomodava-me de tal forma que era insuportável ficar debaixo do mesmo teto. Ela continuava com os trabalhos domésticos como antes, mas a sua vigilância sobre mim aumentava a cada dia: durante a noite, enquanto eu dormia, enquanto corrigia provas. Deparei-me certo dia com ela me espionando no banheiro. Essa foi a gota d’água!
            Um dia, enquanto trabalhava na preparação das minhas aulas, uma mancha negra parecia cobrir a minha alma. Eu estava estranho, com uma maldade subindo do meu ser como jamais havia sentido antes. A origem dessa sombra parecia estar intimamente ligada à velha, pois desde que ela fora viver em minha casa todo o meu ser havia passado por uma transformação macabra.
            Foi então em um maldito minuto que vislumbrei sua silhueta robusta atrás da porta. Não pude me conter. Um ataque de fúria penetrou no meu espírito e me agarrei ao primeiro objeto que tive às minhas mãos. Aquele castiçal estava ali propositalmente, colocado ao meu alcance por uma força sobrenatural à espera do ato infame. Não sei como se deu o fato. Apenas me recordo de uma fumaça vermelha e espessa cobrir meus olhos e depois de sentir um líquido pegajoso respingar em minhas mãos e em minha camisa. O cheiro fétido penetrava minhas narinas e a primeira coisa que eu vi logo após a ira me deixar ofegante foi o corpo roliço e desfigurado no chão.
            Eu havia matado a minha tia.
            O que se seguiu deverá ser resumido de modo que nenhum detalhe importante se perca. O leitor neste momento provavelmente está surpreso como minha total frieza, mas garanto que nada disso foi minha intenção. Tudo o que houve comigo foi uma maldição, um plano arquitetado por alguém (ou algo) que planejou minha ruína total para satisfazer o seu prazer.
            Logo depois que me livrei do corpo (eu o enterrei no quintal de casa, longe da vista dos vizinhos) senti que a paz voltou a reinar sobre meus dias. Retomei minhas atividades rotineiras como se nada tivesse acontecido. Sentia-me aliviado. Nada mais poderia perturbar-me o espírito. Porém, com o passar dos dias tive a infelicidade de constatar que estive errado e que o demônio iria me perseguir aonde quer que eu fosse.
            Acordei sobressaltado em certa madrugada com a sensação de que alguém me observava. No momento que abri os olhos eu a vi. Ela estava lá, aquela bruxa enrugada olhando-me daquele modo que eu odiava ao pé da minha cama. Fechei os olhos. Quando tornei a abri-los ela já não estava mais lá. Voltei a dormir acreditando se tratar de um pesadelo.
            Nos dias que se seguiram a situação desmoronou-se sobre minha cabeça. Parecia que a todo lugar que eu ia lá estava a velha observando-me como seus olhinhos infernais. Na rua, em casa, na escola, no banco. Jamais me deixava. Eu apertava os olhos e quando os abria novamente ela desaparecia. Comecei a acreditar que estava ficando louco. Não saía mais de casa e abandonei meu trabalho. A semana passou lentamente e o medo não me largava jamais. Aonde quer que eu estivesse, em qualquer cômodo que eu me encontrasse lá estava ela a olhar-me daquele modo odioso.
            Em uma tarde gelada, na terça-feira, ouvi a campainha tocar. Era a polícia.
            - Senhor, recebemos um chamado e queremos saber se Dona Catarina se encontra em casa. O senhor é o sobrinho dela, não é?
            Eu tentei agir com naturalidade:
            - Sim, eu sou.
            - Bom, recebemos uma ligação de um homem chamado Fábio que diz ser sobrinho dela e que há dias não recebe nenhuma notícia da tia. Disse que ela estava morando com o senhor e está muito preocupado. Podemos checar se ela está bem?
            Estou arruinado!
            - Ah, senhor, isto não será possível.
            - Por que não?
            - Minha tia saiu, foi comprar alguns produtos no supermercado e pelo visto demorará. Mas eu posso assegurar de que ela está muito bem e que não há motivos para Fábio e nem a polícia se preocuparem.
            - Mas ainda assim eu quero esperá-la. Preciso verificar se está tudo bem mesmo.
            Mas que droga! Maldito Fábio, aquele almofadinha metido e filho da mãe! Agora eu estava em uma situação crítica e não sabia o que fazer para contorná-la. O jeito seria fazer com que o policial acreditasse que ela demoraria muito, se cansasse e fosse embora. Talvez um pouco de dinheiro resolvesse o problema, mas achei melhor não arriscar. Poderia piorar ainda mais a minha situação.
            Eu estava sentado no sofá da sala de estar com o homem à minha frente. Aquele policial tinha um ar desconfiado, como se pressentisse que havia algo errado. Eu suava frio e estava cada vez mais inquieto. Os minutos demoravam uma eternidade e o terror tomou conta do meu ser ainda mais quando vi aquela velha desgraçada observar-me atrás do policial. Cerrei meus olhos com tamanha força, mas quando os abri ela continuava ali, parada, muda como uma estátua. A presença odiosa daquele fantasma me aterrorizou de tal forma que eu não pude me conter.
            - Sua velha desgraçada! Pare de me olhar- eu berrei- saia daqui sua vaca! Você está morta! Morta! Eu mesmo a matei, sua desgraçada!
            Eu já não sabia o que estava fazendo e aquela ira mortal novamente tinha tomado parte do meu espírito. Corri até o quintal com o homem no meu encalço. O espírito estava sobre o local aonde jazia o cadáver de Tia Catarina, a tumba maldita aonde eu a havia enterrado. Peguei a pá e, tomado de grande fúria, desenterrei o corpo em decomposição.
            - Sua desgraçada! Veja, você está morta, sua vaca velha, eu mesmo a matei com o castiçal! Seu sangue está em minhas mãos! Tem que continuar morta! Morta!
            O que se passou a seguir não vale a pena relatar, pois não preciso subestimar a inteligência do leitor. Todos sabem o que acontece com o homem que tem um homicídio em mãos e hoje cá estou eu, tentando narrar uma história que poucos acreditarão ser verdadeira. Nunca mais vi o fantasma de Tia Catarina, ela desapareceu assim que eu entreguei seu cadáver à polícia. Agora, passo meus dias em uma cela apertada vivendo como um animal enjaulado, mas o pior disso tudo é que eu vivo enjaulado dentro de mim mesmo. Posso não ver mais o espírito de minha tia a espionar-me, porém convivo com um outro fantasma, um demônio terrível, sem piedade e extremamente cruel em suas técnicas de tortura.
            O demônio da minha própria consciência.


            

Comentários

  1. Amiga parabens, vc sempre arrasando te desejo muito e muito sucesso, sempre vou esta aqui torcendo por ti, continue assim essa mulher sonhadora e encantadora

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